Páginas

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Chicão, o meu novo dono


Neil direto do canil Ferreira

O Chicão, ex-cão Sem Teto, é a figura mais doce que conheço e veio parar na minha casa por artes da minha filha, minha dona de fato, que já havia acolhido o Fedegoso, novo-rico ex-pobre, da nova crasse mérdia canina ascendente, nunca antes vista nestepaíz.

O Fedegoso, também ex-cão Sem Teto, ganhou na mega sena ao ocupar a minha casa. Conquistou plano de saúde particular para as vacinas, nada de SUS, bolsa-spa para banho e corte do cabelo, torce o nariz para certos tipos de ração e exige “mistura” no jantar. Obediente, acrescento um pouco de carne moída, para a gororoba ficar mais palatável.

Acostumei-me ao Fedegoso, cão médio que já estrelou um artigo nesta página com foto e tudo, “Fedegoso e eu”, e ficou impossível, deu autógrafos para a cachorrada raça-pura da vizinhança e exigiu um osso de cachê para conceder entrevista ao jornal local. Sente-se um Brad Pitt.

Fedegoso é o cão mais parecido com gato que conheço (tivemos uma gatinha, que nos deixou após mais de 16 anos de convívio). Você chama e ele não vem; só vem quando dá-lhe na telha.

Rola no chão, fica de barriga pra cima, dá patadas no ar com as patinhas da frente e lambe a mão da gente, parece que dá risada. Faz as mais incríveis fofices, a um preço combinado, exige ganhar biscoito pelo número artístico e ganha.

Tem casinha própria do plano “Minha casa minha vida”, com mesa de bilhar e reproduções de Van Gogh na parede, mas não entra nela nem quando chove o tanto que choveu neste verão.

Prefere ficar no seu bunker onde acho que se sente seguro, um posto de vigilância onde passa quase todo o tempo em que não está pedindo biscoito: sob os carros, na garagem que é aberta.

Minha filha acha que ele acostumou-se a ficar debaixo de carros quando era habitante de rua, eram o seu teto; viciou-se em cheirar óleo, etanol, gasolina, borracha de pneus. Se sumir, vou procurá-lo em alguma oficina mecânica.

O Chicão embora da mesma raça, na sua carteirinha de saúde está escrito “SRD”,” Sem Raça Definida” como o Fedegoso, sabe-se que a raça deles é super-definida, ambos são vira-latas puros de nascença; o Chicão, eu dizia, embora da mesma raça é de outra raça.

É grandão e desajeitado para os padrões de quem estava habituado ao Fedegoso, tem um vozeirão mas é amigável, brincalhão ao extremo adora a companhia humana e despreza a raça canina.

Ele não é um cão, ou não sabe que é, ou se sabe não concorda, como está mais do que demonstrado à minha familia inteira, incluindo as netinhas, a quem observa com um ar blasé e certo distanciamento brechtiano.

Foi abandonado perto da portaria do condomínio em que moro, onde já residia, por invasão, outro Sem-Teto, um enfezadinho mestiço poodle, o Mau Elemento, alimentado escondido pelo porteiro, com ração doada por minha filha, que acabou sendo adotado.

Minha filha autonomeou-se “tia” do Chicão e um dia pegou a guia e levou-o a pé, para tomar banho e consultar o veterinário para as necessárias vacinas. É uma longa caminhada e ela descobriu que o Chicão era educado, treinado a andar na guia, não puxava, não rosnava para as pessoas, a cauda amistosamente balançando para todo mundo, de extrema gentileza e mansidão com as crianças. Não parecia rir, como o Fedegoso; o Chicão ri.

Ao examiná-lo, o veterinário notou que era castrado. Tudo indicava que era um cão cuidado por uma familia que, por motivos inexplicáveis, tinha-o abandonado perto da nossa portaria.

Não digo que o Chicão só falta falar. Não falta; ele fala. Falou comigo quando minha filha resolveu adotá-lo de vez. Não sossega enquanto não digo bom dia a ele todas as manhãs, exige com divertida insistência o biscoito de boa noite, o mesmo que o Fedegoso ganha, emburra quando recuso de mentirinha.

Vizinhos de condomínio resolveram despejá-lo da portaria e a administradora falou “A gente põe ele num carro e solta na Raposa Tavares”.

Minha filha chegou aos prantos em casa dizendo “Poxa, aceitem o Chico, é só um prato de ração a mais e um pouco de carinho”. E enfática, colocando todo o peso do mundo na palavra “eu”, pronunciada em letras maiúsculas, comprometeu-se: “EU cuido dele”.

Alguém já enfrentou uma filha aos prantos ? Então sabe o que estou falando. E sabe o resultado. O Chicão mudou-se para minha casa. Tem casinha (casinha ? casona, como disse ele é grandão) plano de saúde, bolsa-alimentação, aposentadoria e spa garantidos.

Eu e minha mulher apanhamos barbaridade para pingar o remédio da otite no ouvido dele. Ao “só um prato de ração a mais”, acrescente uvas moscatel, abacate, mamão, pera, maçã e manga, que o lorde aprendeu a comer de sobremesa ou no café da manhã e não dispensa.

E a minha filha, a que cuidaria do Chicão ? Vai bem, obrigado, nos Estados Unidos, ralando o couro (coitada) para o seu Doutorado em Genética, volta lá pelo meio do ano. De vez em quando manda um e-mail perguntando “E aí, o Chico tá se comportando ? Sente a minha falta ? ”

Gosto de cães porque sei o que fazem quando encontram o Poste.

“GOLEIRO TODO TIME TEM; ROGÉRIO CEM SÓ O SÃO PAULO TEM !” (Voz rouca das gerais, arquibancadas, numerdas, camarotes e carros BMW).

Nenhum comentário: